O HOMEM DE SETE CORES POR ANITA MALFATI

Pre-pa-ra!

Falemos um pouco de Anita então. A controversa artista que mesmo sob imensa crítica, revolucionou e conseguiu imprimir sua marca nos cânones da arte nacional. Adorada por muitos e incompreendida por vários, Anita foi uma mulher polêmica, a frente do seu tempo, desafiando uma época conservadora que não tolerava os arroubos de sua arte. Mesmo que o assunto já tenha sido explorado à exaustão, creio que há sempre espaço para se falar um pouco mais dessa artista, a diva Anita Malfatti.

Nascida no ano de 1889 em São Paulo, filha de mãe americana e pai italiano, teve que lidar com uma condição congênita que lhe atrofiou o braço e a mão direita. Devido a isso aprendeu a desenhar, escrever e a pintar com o outro lado, tornando-se uma falsa canhota. Após a morte do pai, desalentada com a vida trágica que entendia ter, Anita decide que o auto-extermínio, ou algo perto disso, poderia lhe dar alguma perspectiva que sentia carecer em sua existência. Eis como ela descreve este episódio:

“Eu tinha 13 anos, e sofria porque não sabia que rumo tomar na vida. Nada ainda me revelara o fundo da minha sensibilidade […] Resolvi, então, me submeter a uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte. Achava que uma forte emoção, que me aproximasse violentamente do perigo, me daria a decifração definitiva da minha personalidade. E veja o que fiz. Nossa casa ficava próxima da estação da Barra Funda. Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”

Com os ânimos renovados depois de uma boa experiência de quase-morte, Anita consegue um patrocínio de seu tio e vai estudar arte na Europa, aonde aprende com Fritz Burger (um personagem de mínima relevância para este texto e para a arte em geral, mas cujo nome me cativou) em um primeiro momento e depois com Lovis Corinth, um importante artista que conseguia se utilizar dos jogos cromáticos do impressionismo, mas com o impacto e vibração tão caro aos expressionistas.
Para o expressionismo, conseguir passar a “expressão” do que o artista está sentindo é mais importante que a fidelidade acadêmica e técnica ao objeto retratado ou a impressão que a paisagem causa. A fim de esclarecer e divertir farei uma contraposição com o impressionismo aqui. Pense em uma ponte bem bonita de Monet, tudo calmo, sereno, quase ouvimos o relaxante farfalhar das folhas ao longe. As pinceladas leves procuram retratar a “impressão” que a luz e o movimento causam nesta paisagem. Por isso tantos quadros com o mesmo tema. A mesma ponte pintada, todo santo dia, com a luz incidindo de forma levemente diferente cada vez, e o velho Monet ali, tentando capturar aquilo… Eis a pira do impressionismo. Agora, o expressionismo manda isso tudo as favas! O artista está sofrendo, porra! Ele quer expressar o tanto que a vida é uma merda ali! As cores são fortes, os quadros chamam atenção e chocam. Pense na obra “O Grito” de Edvard Munch. É isso, o que está em jogo aqui não é mais a “impressão” que a luz e o movimento fazem em bucólica paisagem, mas a “expressão” da intimidade do artista, que não costuma ser de boa não.

Anita Malfatti se identificava mais com o expressionismo mesmo e estudou a fundo as técnicas deste movimento, até que a Primeira Guerra Mundial se tornou iminente e morar na Alemanha já não era tão boa idéia assim. Ela então volta ao Brasil e espanta a todos ao mostrar as obras que produzira em sua temporada européia. O pessoal não entendia aquelas cores esquisitas, aquela visceralidade toda. Naquela época, as pessoas esperavam que as mulheres pintassem flores, santos, estas caretices, temas que não interessavam em nada para Anita. O tio que a patrocinou se emputeceu e disse que aquelas obras eram “dantescas” (as ofensas eram mais interessantes naquela época). Sendo assim, ela foi incentivada a viajar novamente, desta vez para os Estados Unidos, para “refinar” sua obra, na verdade queriam que ela perdesse aquela dureza alemã expressionista. Lá, ela demora a se adaptar, mas finalmente encontra um professor (Homer Boss) que a deixa mais “solta”, livre para cultivar e produzir dentro de sua linguagem artística própria. Nesta temporada, Anita entra em contato com outras vertentes da arte de vanguarda da época, tais como o cubismo e o fauvismo, absorvendo o que entendia como pertinente de cada estilo para montar o seu próprio.

Ao retornar ao Brasil, Anita Malfatti monta sua segunda exposição e de novo choca a sociedade conservadora da época. Dessa vez, recebeu uma crítica contundente de Monteiro Lobato (ele mesmo) que comparou sua arte à produção delirante encontrada em manicômios. Sintam o peso:

“[…] nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura”

Recomendo a leitura completa da crítica, disponível em: http://www.mac.usp.br/…/te…/projetos/educativo/paranoia.html

O velho Lobato, conservador até a medula, detonou a exposição e fudeu o esquema de Anita. Dos oito quadros que ela vendera, cinco foram devolvidos e seu tio ameaçou destrui-los a bengaladas. Como há males que vem para o bem, esta pesada crítica acabou por reunir ideologicamente um grupelho de jovens revolucionários que se juntaram a Anita Malfatti, formaram o famigerado “grupo dos cinco™” e resolveram revolucionar a porra toda na Semana da Arte Moderna de 1922, já comentada em outros textos aqui.

Enfim, apresentada a artista, vamos dar uma olhada na obra “O homem de sete cores”, de 1915-16, época que ela se aperfeiçoava nos Estados Unidos.

Como fica óbvio desde o título, as cores são uma preocupação constante da artista. Algumas obras célebres de sua carreira fazem esta referência de começo também (“A mulher de cabelos verdes”, “O homem amarelo”). Um detalhe técnico interessante é que as cores utilizadas não eram misturadas na paleta, e sim diretamente na tela. Isso pode parecer bobo, mas ajuda a entender esta distinção cromática tão clara e expressiva. Chama a atenção também o fato do corpo estar meio “picotado” na tela. Os pés ficam escondidos e cabeça não aparece inteira. Fodam-se as regras! Não precisa nem mostrar o corpo todo, Anita não está nem aí. É interessante este contraste entre um corpo tão expressivo destituído de feições. Ou seja, toda a expressão encontrada neste sujeito lhe foi imposta através destas cores, não lhe cabendo nem ao menos um rosto para se manifestar.

Outro detalhe interessante da obra são essas folhas e flores, tipicamente brasileiras, fazendo um aceno ao movimento modernista. Provavelmente, foram colocadas já um tempo depois do quadro pronto, exatamente para ajudar a caracterizar esta obra como pertencente ao movimento, caracterizado pelo forte viés nacionalista. Este teor está presente também na escolha das cores predominantes, verde, amarelo e azul, bem brasilzão mesmo.

Mestra das cores que era, Anita Malfatti as utilizou de forma bem interessante para tornear o musculoso corpo protagonista da obra. Notem como o contraste entre as cores realçam e dão forma a este corpo. A estranha pose remete aos modernos freqüentadores de academia que se entusiasmam em contorcer seus corpos em formatos artificiais a fim de evidenciar os músculos trabalhados através de exaustivos movimentos mecânicos.

Eis a poderosa Anita, mulher que em face a todas as adversidades, ainda assim apostou na própria loucura e revolucionou a arte brasileira em um momento vital de redescoberta estética.

Vai malandra!

Por Felipe Guimarães (fera)

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