SKELETONS FIGHTING FOR THE BODY OF A HANGED MAN POR JAMES ENSOR

Obra: “Skeletons Fighting for the Body of a Hanged Man”

Hoje o texto é sobre uma obra de James Ensor, peculiar cavalheiro belga que passou a maior parte de sua vida na agradável cidade de Oostende, dedicado a pintar caveiras e chocar a sociedade da epóca.

James Sidney Edouard Ensor (nascido em 1860) sempre foi um sujeito rebelde e tenaz. Quando tinha quinze anos, decidiu que a educação formal não era muito do seu feitio e foi estudar arte na prestigiosa Academia Real de Belas Artes em Bruxelas. Lá, continuou a exercitar sua insubmissão aos cânones tradicionais e quase foi expulso da academia ao utilizar cores pouco convencionais nas aulas (ousado!). Ao retornar à Oostende, transformou o sótão da casa dos pais em estúdio e produziu toda sorte de loucura, inspirado pela loja da família, especializada em vender máscaras para o carnaval e outras curiosidades.

Incompreendido pelos círculos caretas de arte, Ensor começa a expor com o grupo “Les XX” (“Os vinte” ou “Lê Van”, pronuncia-se como toda palavra em Francês, com empáfia). Este grupo promovia artistas alternativos em exposições anuais que também contavam com alguns convidados qualquer-nota, gente do calibre de Monet, Seurat, Cézanne, Van Gogh…

Indubitavelmente, dos vinte malucos que compunham o grupo, Ensor era o mais polêmico. Eis o que o fundador da parada toda, Octave Maus, tinha a falar sobre o sujeito (tradução livre):

“Ensor é o líder de um clã. É o centro das atenções. Ensor soma e concentra certos princípios que são considerados anarquistas. Em suma, Ensor é uma pessoa perigosa, que propõe grandes mudanças… Conseqüentemente, ele está marcado. É para ele que todas as armas estão apontadas. É em sua cabeça que são jogadas os mais aromáticos containers desses assim-chamados ‘críticos sérios’”.

Para os que não conseguem captar as sutilezas das tretas de antigamente, Octave Maus disse que Ensor era o bichão mesmo e que por isso os críticos jogavam merda em sua cabeça (figurativamente, imagino). O que Ensor pensava a respeito disso já estava presente em um desenho antigo seu, em que ele aparece mijando em um muro escrito “Ensor est un fou” (Ensor é um louco). Ou seja, o “foda-se” de Ensor sempre esteve ligadíssimo no último volume.

A obra de Ensor sempre foi permeada por comentários sociais sagazes a respeito da sociedade em que estava imerso. Ele considerava o povo de Oostende “hostil” e “avesso a arte”. Este sentimento de rejeição contribuiu para a escalada do tom “agressivo” (para a época pelo menos) de seus trabalhos. Se no começo eram críticas sutis, um elemento ali, outro acolá, no final ele já não estava mais nem aí e polemizou pesado com seu quadro “A Entrada de Cristo em Bruxelas”, obra de 1889 que só foi exposta em público 30 anos depois. Até o pessoal do “Les XX” achou que ele errou a mão um pouco nessa aí e não topou expor esse trabalho. No final das contas, Ensor entrou em um ciclo, onde se sentir rejeitado turbinava uma arte cada vez mais polêmica e isto por sua vez contribuía para que ele fosse ainda mais rejeitado. A resposta do artista foi dar de ombros, mandar um “fazer o que né?” e continuar sua loucura.

Apesar de ter encontrado toda essa resistência, o artista foi célebre ainda em vida, sendo inclusive nomeado “barão” pelo Rei Albert e ganhado algumas outras honrarias ao final da vida. Apesar disso, continuou ali, em sua Oostende, cada vez menos preocupado em pintar, curtindo sua vidinha pacata na cidade de sempre.

Sem mais lenga-lenga, vamos dar uma olhada nessa doideira chamada “Esqueletos Brigando pelo Corpo de um Enforcado”:

De cara já dá pra perceber a marca distinta do artista, essa coisa meio colorida, meio macabra, um pouco patética. Cores claras para um tema sombrio. Ao centro, duas figuras se degladiam com vassouras por um corpo pendurado, aonde pende uma placa escrita “Civet” (um prato de guisado de lebre), sugerindo que o destino deste pobre maldito é ser devorado. Ao redor, figuras grotescas observam a ação. Apesar do cenário dantesco, a cena chega a ser cômica se observamos o delicioso e sagaz verniz de crítica social que recobre a obra. Os esqueletos que compõem a ação ao centro da tela estão vestidos como duas senhorinhas e é inevitável lembrar passagens cotidianas atemporais e comuns, como uma treta de bairro qualquer em que a vizinhança se reúne para conferir o que acontece e logo passa a saborear a breve e estúpida ruptura de uma rotina desgraçada e bovina. É como se o artista nos comunicasse que o trivial pode ser épico em uma vida tacanha.

Ao observar as faces destes curiosos seres, fica clara a inspiração extraída da loja de máscaras da família. Inclusive, na obra de Ensor é difícil saber ao certo se estes personagens tratam-se realmente de figuras horrorosas ou se são somente máscaras que utilizam. Na vida real é assim também, então, ponto para o artista aqui. As máscaras grotescas também lembram um pouco as faces retratadas por Bruegel (o velho), notório por pintar rostos como alegoria a vícios e idiotices, despersonalizando o ser e transformando-o em mera representação dessas características. Como Bruegel, as imagens de Ensor são lotadas por personagens, nos dando a impressão claustrofóbica de falta de espaço. Através de um hábil uso de cores e organização do espaço, ele nos dá a impressão de que fazemos parte do cenário. Não somos “convidados” a entrar na obra, é ela que nos invade, automaticamente nos tornando débil e patético como os outros personagens retratados.

Nesta tragicomédia macabra, a morte é despida de todo viés poético e sublime. Aqui, o “além” é tão somente continuação tosca dos elementos rotineiros da vida. É como um deboche infernal, aonde a não-vida é pouco mais do que uma mudança estética, sendo nossa desgraça a condenação à tolice eterna. Ciente disso, o artista utiliza uma paleta colorida e traços pouco comprometidos com a técnica formal e acadêmica da arte à época. Isso nos dá a impressão de ser algo quase infantil, mas não se enganem, James

Ensor foi um artista profundamente talentoso e técnico, tendo antecipado inúmeras correntes da arte moderna (todas, segundo o próprio), sendo figura fundamental para o expressionismo, simbolismo, fauvismo, surrealismo e toda uma imensa gama de outros “ismos”. Porém, Ensor sempre ocupou uma categoria a parte, não sendo oficialmente o “pai” de nenhum destes estilos e nem podendo ser facilmente encaixado em qualquer um deles.

Sempre corajoso, Ensor rompeu barreiras e foi um inovador altamente criativo. Talvez não receba tanto reconhecimento quanto deveria, mas sua resistência aos padrões da época semeou toda uma quebra de paradigma estético. Inovador na forma e no conteúdo, sua disposição em criticar a sociedade em que vivia serviu de influência para toda uma geração de artistas críticos e descontentes. Este é o nosso Ensor, peculiar cavalheiro Belga, que só queria mandar todos as favas e pintar sua loucura na agradável cidadezinha de Oostende.

Obs: Ele tinha vários esqueletos em seu estúdio, que vestia com diversas roupas diferentes e depois os pintava e (provavelmente) se divertia com eles.

Leitura dominical por Felipe Guimarães

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