O MANEQUIM DE PALHA POR GOYA

Goya é (também) conhecido por suas perturbadoras obras que refletem o intenso sofrimento desta alma em desalento. Desde os horrores da guerra até seus mais íntimos demônios; Francisco José de Goya y Lucientes colocou em tela as mais macabras manifestações de sua transtornada psique. A obra analisada neste texto, porém, é de uma fase em que o artista estava um pouco mais “em paz”, ou assim parecia. Ela é de 1792, logo antes de Goya contrair a misteriosa doença que o deixou surdo (em 1793). Esta mazela é considerada o marco que distingue a fase de buenas do artista de toda a cabulosidade que se seguiria. Porém, como veremos a seguir, desde essa época o cara já colocava em sua arte uma pitada de treta.

Esta obra se chama “The Straw Manikin” ou “O Manequim de Palha” na língua de Camões e Zeca Pagodinho. O tema é uma simples, se não um pouco boçal, brincadeira de ficar jogando um boneco pro alto (“Pelele”) enquanto se entoam cânticos macabros prometendo dar uma surra nele e depois matá-lo. São quatro moças segurando as pontas de um pano e utilizando-o para projetar o pobre manequim para lá e para cá, enquanto celebram a juventude em meio a doces risadas.

Para contextualizar a obra é importante ter em mente que este quadro foi influenciado pelo Rococó, um estilo nascido na frança do séc. XVIII, onde predominam cores claras, temas leves, gente feliz, piqueniques, jovens apaixonados, vinho e baguete… Dá pra perceber essas influências nas bochechas rosadas das moças, na paleta suave utilizada e na paisagem idílica onde ocorre esta alegre brincadeira. Ele foi pintado em uma época que Goya já tinha bastante moral com a realeza espanhola, que encomendava a ele obras com este tipo de temática, coisas banais do dia a dia para decorar as residências reais. Neste contexto não cabia ainda toda a força e loucura características de seus trabalhos posteriores. Era só um “trampinho” que ele fazia para a corte. Estas pinturas depois eram tecidas e viravam majestosas tapeçarias (da pra ver como é feito isso aqui: https://www.youtube.com/watch?v=jIbu-dJuEh0) a serem contempladas pelos nobres entediados.

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas há um importante subtexto político aí. Espanha e França são países vizinhos com uma rica história de influência recíproca e pau quebrantagem. Havia tensão nesta época entre os espanhóis patriotas que reivindicavam a valorização dos costumes, roupas e hábitos da terra (os majos ou “manolos”, hahah) e o pessoal mais da elite que achava tudo da França muito chique e eram influenciados pelo modo francês de ser e se vestir (os “afrancesados”). As moças do quadro são legítimas “majas”, desde as roupas tradicionais até o modo risonho e fanfarrão de curtir a vida. O manequim só seria mais “afrancesado” se tivessem colocado uma garrafa de vinho na mão dele e o nome fosse “Pierre”. Fica fácil perceber a mensagem então, principalmente quando se nota a cara de desespero do pobre manequim, que sofre em sua silenciosa agonia enquanto é impiedosamente destroçado pelas alegres majas.

Chama atenção as poses rígidas e as faces pouco expressivas das moças, quase que manequins também; muito aquém da capacidade técnica que Goya já havia demonstrado possuir. Para certos estudiosos, isto seria um sinal de “preguiça” do artista, que não estava muito aí para estes trabalhos encomendados. Outros já viajaram mais e disseram que a rigidez das figuras é uma crítica do autor à vida extremamente regrada que a nobreza levava.

A interpretação mais comum deste quadro é como uma alegoria da dominação que as mulheres exercem sobre os homens aparvalhados, destinados a serem jogados de um lado ao outro enquanto elas riem e dançam. Esta perspectiva faz mais sentido se levarmos em consideração o cântico comumente entoado na brincadeira reproduzida na obra. A música se chama “El Pelele esta Malo” e tem uma forte conotação sexual, aludindo à incapacidade de certos homens de conseguirem levantar seu “pelele”. Segue a letra da música em espanhol:

“El pelele esta malo

que le daremos

una zurra de palos

que le matemos

una zurra de palos

que le matemos

El pobre pelele

Empelelao

se tienta lo suyo

lo tiene arrugao

le da con el dedo

lo quiere bullir

el pobre pelele se quiere morir”

Não me atrevo a tentar traduzir, mas a idéia é que o pobre Pelele vai tomar uma surra de varas, tem o negócio enrugado que tenta com o dedo “botar pra ferver”/movimentar e quer morrer. Pobre Pelele. As risadas das moças agora ficam especialmente malévolas.

Enfim, como toda boa arte, são várias as interpretações possíveis e a verdade provavelmente é que Goya só queria uma grana pra curtir sua loucura em paz. De qualquer forma, é certo que o gênio atormentado deste artista transparece até nas obras apriori mais triviais.

Por Felipe Guimarães (Fera)

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