A GRANDE ONDA KANAGAWA DE KATSUSHIKA HOKUSAI

Contemplem a tela mais célebre da arte oriental. Motivo de inúmeras estampas, tatuagens e temas de fundo de tela. Diretamente da terra do Giban e do Black Kamen Rider, eis “A Grande Onda de Kanagawa” (神奈川沖浪裏 Kanagawa-oki nami ura, para os entendidos). Uma obra do meio do século XIX (meados de 1830) do célebre artista “Katsushika Hokusai”.

De um gênero conhecido como “Ukiyo-e” (“retratos do mundo flutuante”), esta é daquelas obras que se revelam nos detalhes. À primeira vista ela pode não parecer tão foda assim, mas isto é só tolice ocidental mesmo, pois ao analisá-la de perto, o apuro técnico e a sutileza da tela tornam-se evidentes. O primeiro fator que deve ser levado em consideração é que não se trata de uma pintura e sim de uma Xilografia (pense naquelas imagens que costumam ilustrar um cordel). Toda essa doideira então foi entalhada na madeira para depois ser prensada em milhares de cópias por aí, vendidas na época por pouco mais que o valor de uma tigela de miojo (sério). Este tipo de trabalho não era visto como arte no Japão, sendo mais ou menos o equivalente àquelas placas “Aqui nois bebe”, presentes nos melhores espaços de churrasco deste Brasilzão. Ou seja, uma decoração para deixar o ambiente mais bonito e demonstrar a todos o bom gosto do anfitrião.

Hokusai (este é só o mais célebre dos mais de trinta pseudônimos que utilizou) já era um cabra idoso quando produziu “A Grande Onda…”. Com mais de 60 anos de carreira, curtia ali sua velhice pacata de japonês do séc. XIX, quando se viu completamente sem grana devido à excentricidade de seu neto, que torrou todo o seu (dele) dinheiro na noite. Sem muito que fazer, lá foi o venerável senhor Hokusai trabalhar para juntar algum. Decidiu produzir uma série intitulada “36 vistas do Monte Fuji”, em que ele pinta toda a placidez e beleza do sagrado vulcão ativo que desde sempre ocupou a mente e os sonhos do bravo povo nipônico. A maioria dos trabalhos desta série são paisagens serenas, feitas sob medida para repousar os olhos e acalmar a mente. “A Grande Onda…” não. Ela destoa disso e é treta do começo ao fim. Vamos lá:

A primeira coisa que um observador atento vai pensar ao analisar profundamente esta obra é “Fudeu! Os caras dos barquinhos vão pro saco mesmo”. E de fato, certamente morrerão de forma horrível, aniquilados por esta onda monstruosa que se projeta sobre eles como se fosse a garra de um deus diabólico e pouco afeito à vida destes insignificantes humanos que ousaram penetrar em seu reino. É nesta ambigüidade que reside a força da imagem, que consegue retratar um momento tão aflitivo de forma simples e bela. Todo o drama ali contido fica em segundo plano ante a majestosa vista do mar desenhado pelo artista e o Monte Fuji atrás, observando tudo inerte, adornando este macabro espetáculo. Segundo o cálculo de cientistas sérios (mesmo que pouco atarefados), a onda principal mede 12 metros. Suficiente para promover certo estrago na vida destes pobres pescadores. Ressalto também que há uma nuvem parecendo o Cristo Redentor olhando tudo isso.

Outro ponto interessante desta obra é a perspectiva utilizada. Na época em que foi feita, o Japão ainda era um país muito fechado, que promovia pouca troca cultural com o ocidente. Quem colava com eles eram só os Holandeses, que podiam freqüentar o porto de Nagasaki. Como todos sabem, a Holanda é conhecida principalmente pela legalização das magníficas obras de arte produzidas pelos seus mestres, verdadeiros pilares da história da arte. Algumas destas obras eram levadas para o Japão, onde encantavam todos, inclusive nosso Hokusai, que ficou fascinado pelo modo como eles trabalhavam a questão da perspectiva em seus quadros e misturou isso à estética típica das telas japonesas da época, criando uma arte híbrida e completamente nova. Além de utilizar cores “ocidentais” nesta composição, no caso o “Prussian Blue” (mesmo azul utilizado por Van Gogh em “A Noite Estrelada”), obtido através de escusas negociatas com durões piratas holandeses. Não é a toa que ele inspirou gente boa como Matisse, o próprio Van Gogh e tantos outros nomes inevitáveis da arte.

Hokusai era obcecado por aperfeiçoar seu domínio sobre a parte técnica do desenho, e isto é bastante perceptível nesta obra de sua maturidade. Basta notar que a composição é feita basicamente de círculos e triângulos. Da forma circular com a qual as ondas se projetam à estrutura triangular da onda em primeiro plano e do Monte Fuji atrás, o artista transforma estas formas simples em figuras deslumbrantes. A coisa fica ainda mais fascinante quando pensamos que o momento capturado foi retratado sem a ajuda de fotografias, tecnologia ainda não presente nesta época. Este senhor simplesmente conseguiu traduzir de forma tão singela um momento de intensa ação através da observação pura.

Um gênio a frente de seu tempo, Hokusai só queria ficar quieto e aprimorar cada vez mais sua arte. Nos despedimos desta obra reproduzindo uma fala sua pouco antes de morrer, com 89 anos:

“Se pelo menos os céus me dessem mais dez anos… Só mais cinco anos, então eu poderia ser um verdadeiro pintor”.

Mais uma produção fera do Felipe Guimarães

Deixar um comentário

Seu e-mail não será publicado.